Bento, Baruch, Benecditus? Tanto faz... Espinosa!


"Exatamente: Bento Espinosa tinha um ponto fraco que Simão já havia identificado. Era um apaixonado pelos livros, e não apenas por lê-los, mas também por possuí-los. Embora sempre recusasse, polida e firmemente, qualquer outro presente, não conseguia recusar um livro precioso. Assim, Simão e vários outros colegiantes vinham, pouco a pouco, construindo para ele uma bela biblioteca que já havia preenchido quase por completo a grande estante que ocupava uma das paredes do seu quarto em Rijnsburg. As vezes, tarde da noite, quando não conhecia dormir, Bento se aproximava das estantes e sorria fitando aqueles volumes. As vezes, dedicava-se a arrumá-los por tamanho, por tema ou simplesmente por ordem alfabética. E, as vezes, inspirava os cheiros dos livros ou os acariciava, deliciando-se com o seu peso ou com o contato das diferentes encadernações na palma da suas mãos."

Eu já tinha conhecimento de algumas coisas sobre os pensamentos de Bento Espinosa, mas fui agradavelmente surpreendida com suas ideias. Há tanta coisa que concordo que podia jurar que em algum momento tínhamos nos encontrados e trocado experiências! Algo bom demais de se ler.
"O Enigma de Espinosa", de Irvin D. Yalom, Editora Agir, é um livro surpreendente, de natural beleza e ideias avançadas em pleno século XVII. Tão avançadas que esse judeu de raízes portuguesas foi descomungado da comunidade judaica proibido de ter qualquer contato com qualquer membro dessa comunidade, inclusive amigos e familiares! Nenhum judeu deveria ler o que ele escrevia ou chegar a menos de 4,5m da sua presença física.
Yalom faz uma ponte simultânea entre nosso filósofo e Alfred Rosenberg, um servo fiel de Hitler, antissemita e principal responsável pela política racial do III Reich.
Que interesse misterioso teria Rosenberg pelos livros do pensador à ponto de confiscar todos os exemplares do Museu de Rijnsburg (Holanda) e não queimá-los, como era de padrão? Por que foi alegado que aquelas obras serviriam para o estudo do "problema de Espinosa"?
O tal relatório sobre os saqueamentos de Rosenberg, podemos encontrar na internet, ele  está entre os documentos oficiais do julgamento de Nuremberg.
Para responder essas e outras perguntas, nosso autor constrói com uma maestria narrativa ficcional em que vai intercalando supostos acontecimentos da intimidade do filósofo santo e iconoclasta e do cruel assassino em massa, numa história sobre as origens do bem e do mal, sobre a filosofia da liberdade e a tirania do terror.
Irvin passou anos estudando a vida de Espinosa, o filósofo o intrigava - era só no mundo, sem família, sem fazer parte de qualquer sociedade - um filosofo que escreveu livros que mudaram o mundo de forma efetiva. Ele antecipou a secularização, o Estado liberal-democrático e a ascensão das ciências naturais, preparando assim o terreno para o Iluminismo. 
O fato de ter sido excomungado pelos judeus aos 24 anos e censurado pelos cristãos pelo resto da vida sempre fascinou o escritor - e eu, de passagem! Essa estranha identificação com Espinosa acabou sendo reforçada quando Irvin ficou sabendo que Einstein, um dos seus primeiros heróis, era espinosista. Sempre que ele falava de Deus, era o Deus do Espinosa que se referia - "um Deus inteiramente equivalente à natureza, que inclui toda substância e que NÃO joga dados com o Universo" -, um Deus que significa que tudo acontece, sem exceção, e segue as imperturbáveis leis da natureza.
Irvin escreve um romance de ideias, assim como fez em seus livros anteriores sobre Nietzsche e Schopenhauer. 
O livro é um enigma do começo ao fim, tem muita história consistente tanto sobre o que foi a vida do filósofo e sobre a Segunda Guerra Mundial. 
Rosenberg também é um personagem importante, real e problemático. 
O livro é uma "dança" de ideias emblemáticas, que só vai acrescentar e nos fazer refletir sobre tantas coisas injustas que acontecem desde que o mundo é mundo e lançar sobre nossos ombros uma luz; a luz que TODOS deveriam usar com consciência, mas em inúmeras vezes faltam-nos coragem, atitude, ou pior, medo.
Um livro com a história de um filósofo que viveu no século XVII, mas na verdade tão atual. Tão visionário.
Para quem gosta de Filosofia, mas "foge" dela por motivos óbvios: o seu grau de dificuldade, tá aí um livro que vai faze-lo entender as ideias de um dos maiores filósofos do século XVII de uma forma "descomplicada".
Se eu já gostava de suas ideias, agora posso defendê-las com certo grau de entendimento e ideias para me apoiar, afinal, estamos falando de Bento Espinosa, ou se preferir, em hebraico, Baruch Espinosa, ou em latim Benecditus Espinosa.
Boa leitura!

Cláu Trigo

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