Resenha: A Mulher Com Olhos de Fogo - Um 'Rolê' Pelo Mundo

Título: A Mulher Com Olhos de Fogo
Autor(a): Nawal El Saadawi
Editora: Faro
Páginas: 160
Ano: 2019

País: Egito
Onde Comprar: Amazon
Sinopse: Esta ficção é baseada no relato verdadeiro de uma mulher que espera sua execução em uma prisão no Egito. Sua história chega até a autora, que resolve conhecer Firdaus para entender o que levou aquela prisioneira a um ponto tão crítico de sua existência.
Deixe-me falar. Não me interrompa. Não tenho tempo para ouvir você, começa Firdaus. E ela prossegue contando sobre como foi crescer na miséria, sua mutilação genital, ser violada por membros da família, casar ainda adolescente com um homem muito mais velho, ser espancada frequentemente, e ter de se prostituir… até que, num ato de rebeldia, reuniu coragem para matar um de seus agressores, levando-a à prisão.

Quantos anos da minha vida se passaram antes que eu me tornasse realmente a dona do meu corpo e de mim mesma, para fazer o que eu bem entendesse? Quantos anos da minha vida se perderam antes que arrancasse a mim mesma e o meu corpo das garras das pessoas que me mantiveram em seu poder desde sempre? Agora eu podia escolher a comida que eu queria comer, a casa na qual eu preferia morar, recusar um homem pelo qual eu sentisse aversão, por qualquer motivo que fosse, e escolher o homem que eu desejava ter, mesmo que fosse apenas por suas unhas limpas e bem-cuidadas. Um quarto de século já havia passado. Agora eu tinha vinte e cinco anos, e pela primeira vez consegui ter meu próprio apartamento, limpo e com vista para a rua principal."

Desde que esse livro foi lançado esse ano pela Faro, eu estou de olho nele e já pensando em passa-lo na frente para ler logo. Felizmente, nem precisei dar essa "roubada". O primeiro livro sorteado para o desafio Um 'Rolê' Pelo Mundo foi  A Mulher Com Olhos de Fogo, representando o Egito!
Em 1973, Nawal El Saadawi se aprofundou nas suas pesquisas sobre neurose em mulheres egípcias. Como médica e psiquiatra feminista, Nawal recebia muitas mulheres que buscavam seu aconselhamento para conseguirem lidarem com situações que a levavam a um estado de "pertubação mental". Para isso, ela escolheu alguns casos e fez diversas visitas a hospitais e prisões.
Uma das prisões que ela conheceu e que foi onde tudo começou, foi a Prisão Para Mulheres em Qanatir. Conversando com um dos médicos de lá, Nawal soube do caso de uma mulher que havia matado um homem e por isso tinha sido condenada à morte por enforcamento. Essa mulher? Firdaus.
Após diversas recusas, Firdaus começou a contar a sua história aos poucos. Tudo que ela contou antes de morrer, no final de 1974, está nesse livro. Outras partes, de desconhecimento da autora, foram criados por ela para a construção da história.
Crescendo na miséria, sobrevivendo à mutilação genital e à violência cometida por familiares, lidando com um casamento ainda na adolescência com um homem bem mais velho e tendo que se prostituir, essa é a história de Firdaus, uma mulher que num ato de rebeldia, cometeu um assassinato e foi parar na prisão. Uma mulher que é conhecida por todas as outras mulheres. Como diz o prefácio, escrito por Miriam Cooke em 2007: "Firdaus é uma personagem conhecida mundo afora. Sem dúvida. De Jacarta a Gidá, de Jerusalém a Joanesburgo, mulheres muçulmanas e não-muçulmanas conhecem essa mulher, essa heroína de A Mulher Com Olhos de Fogo.".
O livro de somente 160 páginas, começa com Nawal chegando à prisão e tentando inúmeras vezes o contato com Firdaus. A partir do momento que a prisioneira permite - um dia antes da sua execução -, começamos a descobrir como foi a sua vida, desde pequena até o momento do assassinato. Passamos por todas as suas dificuldades, sendo todas narradas pela própria Firdaus.
Um livro forte, assustadoramente real e que deveria ser lido por todo mundo, pois apesar de ter acontecido nos anos 70, em uma cidade e país totalmente diferente do nosso (Cairo, Egito), é uma história que facilmente poderia acontecer aqui no Brasil, amanhã mesmo.

- Vamos... A sua hora chegou.
Então eles a levaram embora da sua cela. E nunca mais voltei a vê-la. Mas a voz dela continua a ecoar nos meus ouvidos, vibrando dentro da minha cabeça, na cela, na prisão, nas ruas, no mundo inteiro. Transformando tudo, espalhando o medo por todos os lugares, o medo da verdade que mata, o poder da verdade, tão violento, simples e terrível quanto a morte, e mesmo assim tão simples e tão nobre quanto uma criança que ainda não aprendeu a mentir.
O mundo estava repleto de mentiras, e ela teve de pagar o preço por isso.
De cabeça baixa, entrei no meu carro. Havia um sentimento de vergonha dentro de mim. Vergonha de mim mesma, da minha vida, dos meus medos e das minhas mentiras. As ruas estavam cheias de pessoas apressadas e agitadas, de jornais pendurados em bancas de madeira, exibindo suas manchetes em letras garrafais. A cada passo que eu dava, onde quer que eu fosse, eu podia ver as mentiras, testemunhar o triunfo da hipocrisia. Eu afundava o pé no acelerador como se tivesse pressa para atropelar o mundo e acabar com ele. No instante seguinte, porém, levantei rapidamente o pé e freei de modo brusco, e o carro parou de repente.
E nesse momento percebi que Firdaus tinha mais coragem do que eu."

Um livro que me deixou muito feliz de ter lido, mesmo que o livro não tenha nada de feliz. Um começo de desafio que não poderia ter sido melhor.
Próxima parada: Áustria, com o livro Desejo, de Elfriede Jelinek!

Até a próxima e boa leitura!